28 março 2017

Conto Desencanto

Conto Desencanto




"Queria, antes de inventar o guarda-chuva, e ser atropelado, ter aprendido mágica.

Caído no meio da rua de pedras retangulares desalinhadas, ouvia a chuva como no interior de uma concha, e não sentia mais os pingos espancar o rosto, não sentia mais nada, de olhos arregalados, ao lado do guarda-chuva, que inventou, precisamos lembrar, originado de costumes litúrgicos orientais antigos, confeccionado agora com couro de avestruz e estruturado por balsa, mesmo tendo, esse sujeito, de enfrentar o escárnio por ter inventado o guarda-chuva e carregá-lo solitariamente pela cidade, queria ter aprendido mágica.

Saberia, sendo um grande mágico, o velho truque do coelho, o das cartas, o da moeda, o do levitador, o da mulher serrada ao meio. Todos eles.

Conquanto mágico, com seu método faria pequenos objetos sumirem e reaparecerem. O artifício de surpreender qualquer um que tivesse um ou dois minutos.

Aprendido mágica, reteria com isso também o domínio do autodesencanto.  Uma vez mágico, não haveria mais a mágica, pois ela, conquistada, se perderia. No momento adiante, seria o dono de outra ignorância incorrigivelmente inacessível. Para ele, os truques se tornariam apenas mais um ritual, como o de escovar os dentes, o de lustrar as botas, o de cortar laranjas."

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13 março 2017

teste

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Haveria então essa casa imaginada por ela e invisível para os outros. O cheiro de café sendo coado viria da cozinha e logo abraçaria todos os outros cômodos, do térreo ao segundo andar, e se você pudesse ficar em silêncio sentada no fim da escada de madeira, ouviria a avó materna assobiar a mesma música do Roberto Carlos de todas as manhãs tocada no radinho, enquanto estalava as pontas dos chinelos de borracha contra o piso de tacos, e algumas panelas bateriam umas nas outras para que buscasse a frigideira e completasse a feitura do café da manhã, e saberia que, se pudesse continuar a ouvir os sons da cozinha e levantar do degrau e andar até a janela da sala, abriria as cortinas finas decoradas por rendas, para revelar a rua recém-asfaltada, e um Fusca barulhento tentaria dar partida em algum lugar lá fora, um velho barrigudo sem camisa em uma bicicleta atravessaria a composição da vista entre a sua casa e as casas de muros baixos brancos, rosas e amarelos do outro lado da rua, e, antes do retorno, eles mais uma vez surgiriam, vindos das esquinas, caminhando com lentidão até o portão, atravessando o quintal, abrindo a porta e entrando, todos, todos esses familiares invasores, passo a passo, que, a esse estágio da fuga, seriam a única coisa indestrutível.