08 junho 2017

Video Explicativo - Animação



28 março 2017

Conto Desencanto




"Queria, antes de inventar o guarda-chuva, e ser atropelado, ter aprendido mágica.

Caído no meio da rua de pedras retangulares desalinhadas, ouvia a chuva como no interior de uma concha, e não sentia mais os pingos espancar o rosto, não sentia mais nada, de olhos arregalados, ao lado do guarda-chuva, que inventou, precisamos lembrar, originado de costumes litúrgicos orientais antigos, confeccionado agora com couro de avestruz e estruturado por balsa, mesmo tendo, esse sujeito, de enfrentar o escárnio por ter inventado o guarda-chuva e carregá-lo solitariamente pela cidade, queria ter aprendido mágica.

Saberia, sendo um grande mágico, o velho truque do coelho, o das cartas, o da moeda, o do levitador, o da mulher serrada ao meio. Todos eles.

Conquanto mágico, com seu método faria pequenos objetos sumirem e reaparecerem. O artifício de surpreender qualquer um que tivesse um ou dois minutos.

Aprendido mágica, reteria com isso também o domínio do autodesencanto.  Uma vez mágico, não haveria mais a mágica, pois ela, conquistada, se perderia. No momento adiante, seria o dono de outra ignorância incorrigivelmente inacessível. Para ele, os truques se tornariam apenas mais um ritual, como o de escovar os dentes, o de lustrar as botas, o de cortar laranjas."

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13 março 2017

teste


Haveria então essa casa imaginada por ela e invisível para os outros. O cheiro de café sendo coado viria da cozinha e logo abraçaria todos os outros cômodos, do térreo ao segundo andar, e se você pudesse ficar em silêncio sentada no fim da escada de madeira, ouviria a avó materna assobiar a mesma música do Roberto Carlos de todas as manhãs tocada no radinho, enquanto estalava as pontas dos chinelos de borracha contra o piso de tacos, e algumas panelas bateriam umas nas outras para que buscasse a frigideira e completasse a feitura do café da manhã, e saberia que, se pudesse continuar a ouvir os sons da cozinha e levantar do degrau e andar até a janela da sala, abriria as cortinas finas decoradas por rendas, para revelar a rua recém-asfaltada, e um Fusca barulhento tentaria dar partida em algum lugar lá fora, um velho barrigudo sem camisa em uma bicicleta atravessaria a composição da vista entre a sua casa e as casas de muros baixos brancos, rosas e amarelos do outro lado da rua, e, antes do retorno, eles mais uma vez surgiriam, vindos das esquinas, caminhando com lentidão até o portão, atravessando o quintal, abrindo a porta e entrando, todos, todos esses familiares invasores, passo a passo, que, a esse estágio da fuga, seriam a única coisa indestrutível.

03 agosto 2014

O idiota binário

Segundo o Houaiss:

reacionário
n adjetivo
1 relativo, pertencente ou favorável à reação, ou caracterizado pela mesma; reacionarista, reacionista
2 Rubrica: termo jurídico. contrário, hostil à democracia; antidemocrático
3 Rubrica: termo jurídico. que se opõe às ideias voltadas para a transformação da sociedade 
n adjetivo e substantivo masculino Rubrica: política.
4 que ou aquele que defende princípios ultraconservadores, contrários à evolução política ou social; reacionarista, reacionista

O mantra reacionário é este: a esquerda monopolizou as virtudes. Somente dela, a esquerda, partiriam todos os anseios por benéfices coletivas e individuais. A xepa, o desejo do malogro não abarcado por tais virtudes, então cairia sobre as costas de quem sobrou. Por eliminação, a origem de tal escopo diabólico só poderia ser do outro lado, a direita.

O raciocínio é binário. Um mundo dividido entre o bem -- nós, não importa quem nós -- e o mal -- eles, não importa quem eles -- é tão infantil e bobo quanto parece. A despeito da obviedade, encontra sistemática aceitação e defesa apaixonada. Acreditar em monopólio de virtudes não é só binário, é burro também. Essa definição em si já estaria monopolizando o significado do que é virtude.

A esquerda tem como uma das defesas, a exemplo, a irrestrita liberdade de direitos conjugais a casais homossexuais. A luta contra a homofobia e a favor da aceitação incondicional do afeto não normativo por uma sociedade majoritariamente cristã e conservadora. Não se aceita que uma pessoa seja restringida de direitos constitucionais, sofra violência ou esteja passível a julgamento moral por ser minoria, por não seguir a sexualidade normativa. Apenas isso. Da direita parte a defesa de relações normativas pétreas. São as posições que normalmente ocorrem, não as únicas que ocorrem, e, para estabelecer a divisão entre o que é reacionário e transgressor, são as definições dos dois alinhamentos políticos.

Entre a democracia e o totalitarismo há uma escala. A esquerda democrática não é a mesma esquerda totalitária. A direita democrática não é a mesma direita totalitária, ou reacionária. Não há qualquer intenção de diálogo no segundo campo. Nele, tudo se resume a ad hominem e retórica de enxertos. Para não cair no campo do totalitarismo, o debate precisa acontecer no nível das ideias, não dos indivíduos. Em contextos distintos, democracia e totalitarismo podem partir do mesmo indivíduo. O perigo do reacionário não está no sujeito em si, mas nas consequências que o discurso dele tem por objetivo. Por isso creditar um monopólio de virtudes a alguém não faz sentido.

Virtude é um conceito elástico, filtrado pela ética individual e cultural. Ela não é uma afirmação categórica e universal. Para o pesadelo dos intelectuais binários, não pode haver uma identificação absoluta da virtude nem de quem a exerce, a menos que se monopolize, também, as definições.  

16 maio 2012

Os loucos das pensões e a maldita internet

2011. Meu quarto era o 3, segundo andar. De 50, 70 quartos da pensão. Um refúgio da marquise, de 3,5 por 3 metros. Houve piores. Quartinhos de ficar deitado em uma só posição, feito uma obra de arte cercada de isopor e espuma. Se encucava em voltar para o outro sentido, as pernas deveriam ser dobradas. Jogadas parede úmida e amarela acima. Dobradinho. Um origami de gente.

Desses anos morando em quartos alugados, pouco a ciência desse ex-escritor de blogue pescou sobre o que faz os loucos gostarem tanto dos corredores das pensões. Dos quartinhos de quinhentos dinheiros por mês, incluindo água, luz e internet.

Na Vila Mariana, tinha aquele cara. Um velhaco gordo, que devia andar cinco ou seis quilômetros pelos mesmos dez metros entre a cozinha compartilhada e o banheiro compartilhado, no andar térreo. Andava. Andava para cacete. E falava. Sozinho. Eu o achava um louco inofensivo e sem graça.

Graça tinha o outro velho, o do chapéu de pesca. Esse gostava de mim, por algum motivo. Me trazia bolo de laranja e perguntas. Comprava uma calça ou uma blusa nova e queria saber se o tecido aguentava. Aguentar o quê, seu Alcides? Chuva, sol, essas coisas. Ah, deve aguentar, né? Essas calças são boas, pode confiar. Seu Alcides morreu. Foi enterrado com calças boas, será?

Não apenas de velhos loucos a pensão da Vila Mariana se valia. Ali também uma velha louca, que me via pelos corredores e desviava de mim, fazia meus dias mais esquisitos. A Dona Louca, como eu a chamava. Em algumas noites, quando o sinal da internet caía e eu buscava wi-fi do vizinho pelos corredores (às vezes não me vestia direito, confesso), a Dona Louca interrompia o passo na minha frente, virava a cara para a parede e passava por mim, de costas. Sentia uma inocência oriental nela. Ou o sinônimo de maluca que o leitor achar mais adequado à crônica.

Quando comprei uma antena wi-fi e meti-a no corredor à minha porta, para dar cabo do problema da internet mambembe, o problema então foi o filho mais velho da família que dividia o quarto ao lado (três: mãe, filho velho e filho novo, vivendo num quartinho 3,5 X 3, uma coisa triste, até para a minha sensibilidade). O filho velho seguia esse hábito: chutar a minha antena wi-fi. Ela, a antena, precisava estar direcionada para a origem do sinal, para a parede da entrada da pensão. Eu ouvia um pof, botava a fuça para fora do quarto e lá estava, a minha antena de ponta-cabeça. Vez ou outra pegava o cara no pulo. Ele pedia desculpa e rearranjava a anteninha. Eu fechava a porta e ouvia novamente o pof lá fora.

Morei nessa pensão por oito meses. O dono, seu Carlos, me via como bom inquilino, embora deslocado. Lembro dessas coisas por esta postagem fazer parte dos meus dias finais na pensão do Cambuci, em que passei os últimos seis meses. Onde também há loucos, menos extravagantes e ativos, sim.

Ignoro o que faz os loucos gostarem tanto de pensões. Ignoro o que os fazem gostar ou não de mim. Ou morrerem em calças boas.

A mudança para a nova pensão acontecerá em alguns dias, ainda na Vila Mariana. Uma com 70 ou 80 quartinhos. Espero poder desdobrar minhas pernas e ter uma internet digna e funcional. Os loucos, esses sempre estarão lá.

13 maio 2011

Maupassant às 5

No pernoite, pelo calçamento dos bares e pelas esquinas de maconheiros, a xepa espiritual nas rodinhas de velhos amigos e novos conhecidos requer manejo para com o resultado alheio de uma noite não dormida.

Enquanto as pessoas de bom senso já foram pra casa, às cinco da matina restam o infeliz solitário à espera de um pouco de sorte com as mulheres, o bêbado que não quer dormir tão cedo, o amante com a gatinha chapada e cheia de tesão e o cara que não bebe mas está amarradão em papear sobre coisas inteligentíssimas até o sol nascer.

O tal manejo para com o resultado alheio é a variável da equação entre esses elementos, só ele que pode dizer o seu nível de babaquice ou cinismo.

Estou eu ao redor de comparsas e um casal de estudantes de Letras, numa calçada botequeira da cidade do interior de São Paulo onde mulheres são cuspidas da terra durante a noite e se picam para só Deus sabe de uma hora para a outra.

A Sra. Letras é um desejo copular recorrente. Em seu shortinho jeans exerce grande atração sobre a carcaça ranzinza desse que vos bloga, desde botecos e eventos anteriores, sozinha, como de costume, ou acompanhada de seu mais novo affair e companheiro de categoria universitária.

Ela enlaça os braços ao redor da cintura de seu respectivo, depois entorna uma garrafinha de Heineken e se escora à parede, ao tempo que um de seus pés, extrema extensão de pernas tatuadas muito atraentes, roça as canelas do Sr. Letras, personagem que fez este texto existir.

O Sr. Letras.

Você conhece o figura. Vez ou outra, todos têm às fuças um Sr. Letras, um Sr. Psicologia, um Sr. Star Wars. Não falo dos chegados aos porquês, dos chegados à troca de pois-fique-sabendo. A parada desses senhores está em sua autoafirmação intelectual, em sua molecagem.

Molecagem essa que faz o Sr. Letras entrar numa discussão literária com um sujeito dotado de teorias cambaias do ramo — eu — e deixar a teteia escoradinha na parede beber sozinha e lançar suas pernadas libidinosas no espaço vazio.

Ataques de pernas tatuadas muito atraentes, já devo ter dito. E o rapaz trocando-as por Maupassant às cinco da matina, veja só.

Não havia muito a ser feito senão entrar no cinismo e abraçar a ideia de falarmos sobre livros até o fim dos tempos, sobre os ensinamentos de Flaubert, por que não?, até ela, não se aguentando em pé sozinha de cervejas, lá pelas tantas, quem sabe, desencanar do cara, assim criando uma chance para o lado de cá?

Mas a madrugada é exigente. Em troca de algumas horas, joga bons homens na sarjeta, rouba-lhes parte do ordenado, engana-os com jogos de azar e com mulheres que não saíram de casa com calcinha adequada para ser retirada – não adequada a partir do julgamento delas, obviamente.

Desse plano astral se rumina trololó sobre literatura, e do Além Maupassant bisbilhota a pequena cabalear, algumas vezes, para a esquina próxima e enfiar o dedo na goela, sem conseguir vomitar. Então na sequência dos fatos voltar, sem grande comoção da parte do Sr. Letras, para a roda do Mau.

O Sr. Letras. Ah, o Sr. Letras.

O sol vem. Aos pobres diabos que acordam cedo de domingo para a lida do ganha-pão, às gargantas secas de ressaca, aos cães de rua, a bênção de Deus. E o fim de mais uma noitada desanda na garota de shortinho jeans, pernas tatuadas muito atraentes e libido embriagada a puxar de canto o Sr. Letras e a beijá-lo, despedir-se e.......... ir embora.

Ir embora.

Cruzar a esquina, sozinha. Apenas ela e aquelas pernas.

O Sr. Letras? Este lá ia perder um papo sobre literatura? Voltou para nós, quem não voltaria?

Na calçada botequeira da cidade de mulheres que aparecem e evaporam no ar, restamos nós, comparsas de alucinações sobre como o mundo funciona, o Sr. Letras em sua infinita retórica, o coitado do escritor francês morto e eu, o solitário tagarela.