03 agosto 2014

O idiota binário

O idiota binário

Segundo o Houaiss:

reacionário
n adjetivo
1 relativo, pertencente ou favorável à reação, ou caracterizado pela mesma; reacionarista, reacionista
2 Rubrica: termo jurídico. contrário, hostil à democracia; antidemocrático
3 Rubrica: termo jurídico. que se opõe às ideias voltadas para a transformação da sociedade 
n adjetivo e substantivo masculino Rubrica: política.
4 que ou aquele que defende princípios ultraconservadores, contrários à evolução política ou social; reacionarista, reacionista

O mantra reacionário é este: a esquerda monopolizou as virtudes. Somente dela, a esquerda, partiriam todos os anseios por benéfices coletivas e individuais. A xepa, o desejo do malogro não abarcado por tais virtudes, então cairia sobre as costas de quem sobrou. Por eliminação, a origem de tal escopo diabólico só poderia ser do outro lado, a direita.

O raciocínio é binário. Um mundo dividido entre o bem -- nós, não importa quem nós -- e o mal -- eles, não importa quem eles -- é tão infantil e bobo quanto parece. A despeito da obviedade, encontra sistemática aceitação e defesa apaixonada. Acreditar em monopólio de virtudes não é só binário, é burro também. Essa definição em si já estaria monopolizando o significado do que é virtude.

A esquerda tem como uma das defesas, a exemplo, a irrestrita liberdade de direitos conjugais a casais homossexuais. A luta contra a homofobia e a favor da aceitação incondicional do afeto não normativo por uma sociedade majoritariamente cristã e conservadora. Não se aceita que uma pessoa seja restringida de direitos constitucionais, sofra violência ou esteja passível a julgamento moral por ser minoria, por não seguir a sexualidade normativa. Apenas isso. Da direita parte a defesa de relações normativas pétreas. São as posições que normalmente ocorrem, não as únicas que ocorrem, e, para estabelecer a divisão entre o que é reacionário e transgressor, são as definições dos dois alinhamentos políticos.

Entre a democracia e o totalitarismo há uma escala. A esquerda democrática não é a mesma esquerda totalitária. A direita democrática não é a mesma direita totalitária, ou reacionária. Não há qualquer intenção de diálogo no segundo campo. Nele, tudo se resume a ad hominem e retórica de enxertos. Para não cair no campo do totalitarismo, o debate precisa acontecer no nível das ideias, não dos indivíduos. Em contextos distintos, democracia e totalitarismo podem partir do mesmo indivíduo. O perigo do reacionário não está no sujeito em si, mas nas consequências que o discurso dele tem por objetivo. Por isso creditar um monopólio de virtudes a alguém não faz sentido.

Virtude é um conceito elástico, filtrado pela ética individual e cultural. Ela não é uma afirmação categórica e universal. Para o pesadelo dos intelectuais binários, não pode haver uma identificação absoluta da virtude nem de quem a exerce, a menos que se monopolize, também, as definições.